349 empregadores
ainda submetem os contratados a condições degradantes e subumanas
Com um adiantamento que podia chegar a cerca de 60 reais,
dezenas de trabalhadores rurais foram seduzidos na década de 1990 para capinar
juquira na Fazenda Brasil Verde, no Sul do Pará. Essa espécie de mato,
conhecida por incomodar fazendeiros na criação de gado, foi a principal razão
para um dos casos mais simbólicos de flagrante de trabalho escravo na história do País.
No último
mês de dezembro, enfim, a consequência: o Brasil foi a primeira nação a ser
condenada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não prevenir a
prática de trabalho escravo moderno e de tráfico de pessoas.
Sobraram
evidências para a responsabilização do Estado brasileiro no caso. Além de serem
ameaçados caso abandonassem o emprego, os trabalhadores resgatados nesse local
dormiam em barracões cobertos de plásticos e palha, sem proteção lateral, o que
permitia a entrada de chuva e ventos durante a noite. Também não havia cama, o
“alojamento” era de redes.
E a água,
imprópria para consumo, assim como a alimentação oferecida. Isso não impedia
que os trabalhadores rurais tivessem essas “despesas” descontadas de seus
vencimentos, que nunca chegavam a ser pagos de fato. Ao todo, somente nessa
fazenda, mais de 300 trabalhadores foram resgatados, entre 1989 e 2002.
Foi para
combater situações como essa que o Brasil começou a publicar, em 2003, o
“Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições
análogas à de escravo”, mais conhecida como a Lista Suja do Trabalho Escravo,
que reúne nomes de empresas ou pessoas que colocaram trabalhadores em situações
degradantes ou forçadas de trabalho. Essa importante ferramenta, reconhecida
internacionalmente, não foi publicada, no entanto, pelo governo Michel Temer no
último ano, o que pode sinalizar um retrocesso maior a caminho.
A gestão
peemedebista aproveitou-se de uma decisão judicial já revista para,
simplesmente, ignorar a existência desse cadastro. Isso porque em 2015, durante
o recesso de fim de ano, o ministro Ricardo Lewandowski, então presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu liminarmente e de forma monocrática o
pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) para
suspender a publicação. A Abrainc representa as principais construtoras do País
e está sob comando, atualmente, da MRV Engenharia.
A medida
cautelar foi cassada, entretanto, pela ministra Cármen Lúcia, em maio de 2016 e
o Ministério do Trabalho foi liberado para voltar a divulgar o cadastro há mais
de oito meses. Mas nenhuma lista foi oficialmente divulgada até agora. A
decisão do Supremo levou em conta uma nova portaria interministerial, publicada
no apagar das luzes do governo Dilma Rousseff, para driblar o impasse.
Na
prática, a portaria flexibiliza as regras de manutenção do cadastro de
empregados. Por essa mudança, as empresas flagradas com trabalhadores em
condições análogas à escravidão passam a figurar em uma nova lista se firmarem
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou acordo judicial com a União. Isso
significa que, desde então, o governo poderia publicar duas listas: uma com
empresas que se comprometeram a solucionar o problema e outra com as que não
mostraram intenção de tomar providência alguma.
Ainda
assim, desde que assumiu, o governo Michel Temer ignora essa possibilidade. A
omissão deliberada fez com que o Ministério Público do Trabalho ajuizasse uma
ação civil pública para obrigar o governo federal a voltar a atualizar o
cadastro de empregadores envolvidos com escravidão. No dia 19 de dezembro, o
juiz Rubens Curado Silveira, da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, reconheceu a
importância do tema e determinou que uma nova lista fosse publicada em até 30
dias, a partir do momento em que o governo fosse notificado da decisão.
Na
decisão, Silveira lembrou justamente o caso da Fazenda Brasil Verde. “Esse foi
o primeiro caso decidido pela CIDH [Corte Interamericana] sobre escravidão e
tráfico de pessoas, o que acabou por colocar a República Federativa do Brasil
no 'banco dos réus' do plano internacional", observa o magistrado.
"Nesse
cenário, revela-se ainda mais preocupante a omissão atacada, pois sinaliza um
retrocesso injustificado no trato do tema em uma quadra da história em que o
Estado brasileiro deveria, em resposta à condenação que lhe foi imposta,
redobrar os esforços em busca da extinção definitiva do trabalho escravo em seu
território”.
Para
Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e um dos autores da ação,
essa postura marca o retrocesso de políticas públicas até então elogiadas por
órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional
do Trabalho (OIT). “A publicação da Lista Suja é uma política de Estado e não
uma política de governo. O combate ao trabalho escravo tem de continuar”,
critica. “Essa postura omissiva vem desde maio para cá e não existe
justificativa para isso.”
Além de
uma ferramenta de defesa dos direitos humanos, a Lista Suja também era uma
referência para o mercado e bancos na hora de conceder financiamentos ou fazer
negócios com determinadas empresas. Mesmo instituições privadas utilizavam o
cadastro feito pelo Ministério do Trabalho antes de concluir operações de
crédito para companhias. A decisão do governo federal de impedir o acesso a
essa lista coloca todas as empresas no mesmo patamar.
“Para
além dos direitos humanos e da questão de acesso à informação e liberdade de
imprensa há a questão muito clara de mercado (para a publicação da lista). É por isso que as
empresas sérias querem essa informação, é uma questão de risco. O mercado
brasileiro aprendeu que só tem a ganhar ao gerenciar esse risco, não é fazer
com que as empresas percam negócios”, alerta o jornalista e presidente da ONG Repórter Brasil,
Leonardo Sakamato.
Atualmente,
é a ONG presidida por ele que tem conseguido obter e divulgar a Lista Suja com
a ajuda da Lei de Acesso à Informação. A última foi obtida em junho do ano
passado e apresenta 349 nomes de empregadores.
Para a
Comissão Pastoral da Terra (CPT), a postura do governo federal não encontra
respaldo nem mesmo entre a classe empresarial do País. “Existe um grupo
majoritário que não quer ser confundido com os escravagistas, porque isso pode
fechar o acesso de um produto a determinado país vizinho ou cadeia produtiva no
exterior”, enfatiza o Frei Xavier Plassat, coordenador da Campanha contra o
Trabalho Escravo da CPT.
As vozes
pela atualização da lista não vêm apenas de organizações de combate ao trabalho
escravo e do Ministério Público, a ONU também fez a mesma recomendação ao
Brasil. No ano passado, o órgão lançou um artigo técnico de posicionamento
sobre o tema, em antecipação às comemorações do Dia do Trabalho. Para
evitar retrocessos nas conquistas alcançadas pelo Brasil, o documento da ONU
faz uma série de recomendações, entre elas a reativação da chamada "Lista
Suja" e a manutenção do conceito atual de “trabalho escravo”, previsto no
Código Penal Brasileiro.
"Nota-se
uma crescente tendência de retrocesso [no Brasil] em relação a outras
iniciativas fundamentais ao enfrentamento do trabalho escravo, como por exemplo, o Cadastro de Empregadores
flagrados explorando mão de obra escrava, comumente reconhecido por 'Lista
Suja', que foi suspenso no final de 2014", registra a organização.
Nada
disso comove o ministro Ronaldo Nogueira, do Trabalho, mal assumiu a pasta,
avisou a interlocutores que não iria publicar a lista. A secretária Especial
dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania, Flávia Piovesan, que
tem capitaneado todas as ações sobre o assunto, em novembro anunciou a
coordenação de um Pacto Federativo para Erradicação do Trabalho Escravo com o
estado do Pará, a unidade da Federação com o maior número de casos. Nogueira
enviou seu secretário-executivo, Antonio Correia de Almeida, para a cerimônia,
mas a assessoria de comunicação do ministério mal registrou o fato em seu site.
Não está
claro se a postura decorre de uma decisão particular do ministro, ou se há
algum tipo de orientação vinda do ministro-chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha.
Em dezembro, uma operação das polícias Militar, Civil e Ambiental de Mato
Grosso, que investiga desmatamento ilegal, encontrou em péssimas condições as
acomodações de empregados em uma fazenda de Padilha, em Mato Grosso, e
encaminhou as imagens ao Ministério Público do Trabalho, diante da suspeita de
trabalho análogo à escravidão.
Pressões
de empresas do setor da construção civil, de parlamentares ou até mesmo de
ministros por conta da repercussão negativa da Lista Suja do Trabalho Escravo
não são novidades no País. Esse tipo de relato também era comum nas gestões
petistas e encontrava conivência, inclusive, entre parlamentares do PT e
integrantes do governo Dilma. No entanto, a postura da gestão Temer, mesmo com
vozes dissonantes como a de Flávia Piovesan, pode sinalizar mudanças mais
preocupantes.
Há algum
tempo que integrantes da bancada ruralista tentam abrandar no Congresso a
definição de trabalho escravo, com o objetivo de impedir que flagrantes de
trabalho em condições desumanas seja enquadrado nessa prática. Um dos
patrocinadores desse ponto de vista é justamente o líder do governo no
Congresso, o senador Romero Jucá (PMDB-RR), que foi ministro de Temer.
Em 2014,
quando os congressistas discutiam a PEC do Trabalho Escravo, Jucá tentou
emplacar sua tese sob o argumento de que os termos utilizados para a
identificação de trabalho escravo eram “genéricos”. “O que é sumamente
revoltante para alguns pode não o ser para outros”, amenizava no texto de seu
projeto. “Principalmente porque as condições de trabalho em geral não são lá
essa maravilha nos campos distantes, nas minas, nas florestas e nas fábricas de
fundo de quintal.”
Escrito por Carta Capital